Ciência
– Mundo Cientifico –
O escritor
brasileiro que virou o 'Pelé dos números'
Por BBC Brasil
06 de maio de 2014
Autor
de O Homem que Calculava usava pseudônimo de Malba Tahan, mas na verdade era
Julio César de Mello e Souza
No início do século 20, o público brasileiro foi conquistado por um
escritor de origem árabe em cuja homenagem se comemora, nesta terça-feira, no
país, o Dia
da Matemática.
A história chamou a atenção do autor britânico Alex Bellos que, no artigo a
seguir, relembra esse "Pelé dos números".
"Em 1925, o Rio de Janeiro vivia um clima de
otimismo. A obra para a instalação da estátua do Cristo Redentor no Corcovado
seguia a todo vapor. O samba, recém-nascido, era a nova bossa, verdadeira mania
nacional.
Em artigo de primeira página,
o principal jornal do país, A
Noite, apresenta ao público um novo astro da literatura: Malba Tahan - ou,
citando seu nome completo, Ali Iezid Izz-Edim Ibn Salim Hank Malba Tahan -
escrevia em árabe e sua obra estava sendo traduzida especialmente para o
público brasileiro, dizia o jornal.
Os contos do autor, no estilo das Mil e Uma Noites, traziam
histórias com conteúdo moral e tocavam de leve em temas ligados à matemática.
Fizeram um imenso sucesso. Em 1932, Malba Tahan publicou
o que se tornaria um dos mais bem-sucedidos livros já escritos no Brasil: O Homem que Calculava.
A história se situa no século 13 e começa assim:
'Voltava eu, certa vez, ao passo lento do meu camelo,
pela estrada de Bagdá, de uma excursão à famosa cidade de Samarra, nas margens
do Tigre, quando avistei, sentado numa pedra, um viajante, modestamente
vestido, que parecia repousar das fadigas de alguma viagem.'
O viajante é Beremiz Samir - um matemático persa que
segue acompanhando o narrador em uma jornada de 12 episódios nos quais Samir
resolve problemas usando suas habilidades matemáticas.
Em um dos capítulos, eles visitam a casa do ministro do
rei, o vizir Ibrahim Maluf.
'Atravessamos o pátio e (...)
fomos levados para o interior do palácio. Cruzamos várias salas ricamente
enfeitadas com tapeçarias bordadas com fios de prata e chegamos finalmente ao aposento em que se achava o
prestigioso ministro do rei. Fomos encontrá-lo recostado em grandes almofadas a
palestrar com dois de seus amigos.'
Beremiz impressiona o vizir pela maneira incomum como
contou uma cáfila de camelos - ele conta o número de patas e orelhas, e depois
os divide por seis. Os camelos são um presente para o pai da futura noiva do
vizir, a jovem Astir, de 16 anos.
Beremiz nota, no entanto, que um dos camelos não tem uma
das orelhas.
Ele escreveu
mais de cem livros com seu pseudônimo
'Eu queria fazer uma pequena sugestão', ele diz. 'Se
retirardes da cáfila o tal camelo sem orelha, o total passará a ser de 256.
Ora, 256 é o quadrado de 16, isto é, 16 vezes 16.
O presente oferecido ao pai da encantadora Astir tomará,
desse modo, feição altamente matemática: O número de camelos que formam o lote
é igual ao quadrado da idade da noiva!
Além do mais, o número 256 é potência exata do número 2
(que para os antigos é número simbólico), ao passo que 257 é primo. Essas
relações entre os números quadrados são de bom augúrio para os apaixonados.'
Eu adoro O
Homem que Calculava. O livro nos transporta a um mundo mágico de beduínos,
vizirs, xeiques, príncipes e reis, rico em referências a tradições e islâmicas
e lugares no Oriente Médio. As referências matemáticas, simples e acessíveis,
são o fio condutor da história.
Ele escreve principalmente sobre aritmética, mas também
sobre geometria. E sobre curiosidades como o quadrado mágico - 'um quadrado
cheio de números' - que o sultão dá de presente a Beremiz após o objeto ter
sido salvo da casa de um calígrafo.
'Depois de ter observado com meticuloso cuidado o
tabuleiro e o quadro, disse o Homem que Calculava:
- Esta interessante figura numérica, encontrada no quarto
abandonado pelo calígrafo, constitui o que chamamos um quadrado mágico.
- Tomemos um quadrado e dividamo-lo em 4, 9 ou 16
quadrados iguais, a que chamaremos casas. Em cada uma dessas casas coloquemos
um número inteiro. A figura
obtida será um quadrado mágico quando a soma dos números que figuram numa
coluna, numa linha ou em qualquer das diagonais, for sempre a mesma. (...)
Os números que ocupam as
diferentes casas do quadrado mágico devem ser todos diferentes e tomados na ordem natural.
(...) O quadrado mágico com 4 casas não pode ser construído.'
Beremiz diz ainda que quando um quadrado mágico pode ser
rearranjado para formar outros quadrados mágicos, por exemplo, movendo-se a
última fileira para cima, ou a coluna à esquerda para a direita, ele é chamado
hipermágico. 'Certos quadrados hipermágicos são conhecidos como diabólicos',
ele acrescenta.
Mágico e diabólico
O Homem
que Calculava tornou-se,
merecidamente, um bestseller.
E Malba Tahan ficou famoso, tão famoso como os astros do futebol.
Agora, há um detalhe: o livro foi uma fraude literária.
Malba Tahan nunca existiu. Esse era, na verdade, o pseudônimo de Júlio César de
Mello e Souza, um professor de matemática do Rio de Janeiro que nunca pôs os
pés no Oriente Médio.
Ambos os quadrados são mágicos, mas o quadrado à direita
é diabólico. A constante, 34, é obtida não apenas adicionando-se os números de
qualquer coluna, linha ou diagonal, mas pela adição de quatro números do
quadrado de outras maneiras. Os números nos cantos somam 34. Cada 2X2 quadrado
soma 34. Na verdade, existem 86 maneiras diferentes de se obter o mesmo total.
Mello e Souza nasceu em 1895. Depois de estudar
engenharia na faculdade, passou a ensinar matemática e escrever contos nas
horas livres. Quando ofereceu suas primeiras histórias ao jornal local, foram
recusadas.
Mas quando mudou os nomes das
personagens e dos lugares e ofereceu os contos novamente, dizendo que eram
traduções de históriasdo fabuloso escritor americano RS Slade, os jornais as publicaram.
Mello e Souza percebeu que só
teria chance de fazer sucesso como escritor no Brasil se usasse um pseudônimo
estrangeiro. Seu amor pela matemática tinha despertado nele o fascínio pelas
ciências islâmicas, então, decidiu escrever sobre a Arábia Antiga usando o nome fictício de Malba Tahan.
Mello e Souza criou uma história elaborada para Malba
Tahan. Segundo a invenção do brasileiro, Malba Tahan havia nascido em 1885,
perto de Meca. Tinha viajado pelo mundo inteiro, incluindo uma temporada de 12
anos em Manchester (Inglaterra), onde seu pai era um bem-sucedido mercador de
vinhos.
E muito apropriadamente, o árabe teria perdido sua vida
lutando pela liberdade de um grupo de beduínos no deserto.
Quando Mello e Souza começou a escrever como Malba Tahan,
somente o dono do jornal que publicava as histórias sabia da verdade.
Em sete anos, ninguém percebeu que o famoso escritor
árabe era na verdade um professor de matemática carioca cuja outra paixão era
colecionar sapos de porcelana.
Quando, finalmente, foi revelado que Malba Tahan era, na
verdade, o humilde Júlio César de Mello e Souza, o escritor estava tão famoso
que já não importava mais.
Entre os fãs do autor estavam de crianças ao presidente
do Brasil. Hoje, o mais famoso escritor brasileiro no exterior, Paulo Coelho,
também se diz fã de Malba Tahan.
'Ele foi um grande contador de histórias', diz Coelho.
'Eu pedi à minha família que comprasse todos os livros dele. Um dia, eu disse:
'Meu Deus, esse cara é tão incrível, um dia eu gostaria de conhecê-lo!''
O jovem Paulo Coelho ficou chocado quando seus pais
revelaram que o misterioso árabe Malba Tahan era, na verdade, um amigo deles, e
que morava a poucos quarteirões de distância.
'Fui à casa dele', relembra Coelho, 'e olhei para ele,
apertei a mão dele e acho que ele ficou lisonjeado ao saber que uma criança de
dez anos estava lendo todos os seus livros. Não tive coragem de pedir que ele
assinasse meus livros porque fiquei completamente tímido. Malba Tahan nos falou
da sua linda cultura árabe e ele é tão importante hoje porque a tolerância está
sempre presente em suas histórias.'
Mello e Souza escreveu mais de cem livros. Cerca de a
metade deles é sobre matemática recreacional e a maioria é situada no Oriente
Médio islâmico, embora ele também tenha escrito histórias sobre rabinos,
gregos, chineses e babilônicos.
Mas apesar de sua paixão por culturas estrangeiras, ele
só saiu do Brasil duas vezes, para ir a Portugal e à Argentina.
Ele morreu em 1974, tendo vendido mais de 1 milhão de
livros no Brasil.O Homem que Calculava continua sendo o mais famoso e ainda
está em catálogo.
Minha cópia já surrada é a 74ª edição. O livro foi
traduzido para o espanhol, inglês e alemão.
E ele vai continuar a ser parte da cultura brasileira
desde que o governo brasileiro decretou, no ano passado, que o aniversário de
Mello e Souza, no dia 6 de maio, é o Dia Nacional da Matemática.
Malba Tahan foi chamado de 'brasileiro da Arábia' e 'Pelé
dos números'. Mas será que esse herói brasileiro gostava de futebol?
Não. O matemático achava futebol 'um pouco chato'.
Matemática, islã e colecionar sapos de porcelana eram
muito mais divertidos."
Texto em PDF:
Disponível em < http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2014/05/140506_malba_tahan_mv.shtml
> Acesso dia 09 de maio de 2014.
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